A palavra constitui o mundo

Ashoka Brasil
3 min readJul 14, 2021

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Bruno Souza
Jovem Transformador pela Democracia

Bruno é um homem negro de cabelos crespos castanhos. Está vestindo uma camiseta rosa, uma calça com rasgos no joelho e um tênis preto. Ele está lendo o livro “Ideias para adiar do fim do mundo”, de Ailton Krenak, que tem uma capa azul. Bruno está sentado no chão, encostado em uma parede amarela com um rodapé de tijolos. No chão, há um estojo com canetas coloridas e um livro aberto.
Foto: Arquivo Pessoal

Desde muito cedo — na escola, na rua e até em casa — , pessoas tinham palavras para relacionar minha experiência de vida de jovem negro, morador do Jardim Ângela, na periferia de São Paulo, com meu futuro. Palavras que, quase sempre, me associavam a fraquezas e subalternidades. As palavras que povoavam aquele cotidiano se materializaram, ao longo da minha vida, em expressões de racismo, violências e injustiças.

Certa vez, ainda menino, fui posto para fora de uma aula. Causei estranhamento por ter sugerido ao professor que fôssemos ver, na prática, um processo natural de “erosão”, já que a escola se localizava em uma área de proteção ambiental. Estávamos em Parelheiros, bairro do extremo sul da cidade de São Paulo, que fica em uma região de mananciais e de áreas remanescentes de Mata Atlântica.

O castigo foi ficar na biblioteca. Outra estranheza… Esses estranhos modos de tratar minha curiosidade me levaram a conhecer outras palavras e outros lugares, onde boas palavras vivem: a biblioteca da escola e a Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura.

Descobri, naqueles lugares, que a literatura, como todas as outras artes, inspira e desperta sentimentos que favorecem a empatia e potencializa diálogos. E também descobri que a literatura cria modos de expressar as injustiças que sentimos pessoalmente e também as outras que são coletivas.

Acabei me envolvendo com a Caminhos da Leitura e aquela experiência coletiva me levou a cofundar o Núcleo de Jovens Políticos, que é um coletivo ocupado em refletir sobre políticas públicas voltadas para a periferia, através da articulação da juventude e ações na “quebrada”.

Novamente, aqui temos as palavras no centro da transformação. Percebi que o discurso repetido de que “o jovem não se interessa por política” não correspondia à realidade. Vi muitos jovens na periferia discutindo a sua realidade e propondo alternativas. Mas a política tradicional é feita por homens brancos, ricos e mais velhos, então ela soa assim e faz a gente acreditar que não temos lugar. Por isso, uma das tarefas do Núcleo de Jovens Políticos é decodificar as narrativas do campo e mostrar que política também é lugar de jovem.

O Núcleo quer contribuir para que os jovens falem e discutam política a partir da sua realidade e se formem politicamente a partir do seu território e de seu contexto. Para isso, vamos para dentro das escolas e ocupamos os espaços públicos com debates que reúnem os jovens e incentivam o engajamento nos movimentos políticos do território, como associações de bairro, grêmios estudantis e outros movimentos juvenis.

Uma coisa leva a outra e as conversas nos levaram a pensar e falar cada vez mais sobre um elemento importante do debate político: o racismo. Acabou nascendo o Coletivo Encrespad@s, que promove a educação antirracista.

Carolina Maria de Jesus, em “Quarto de Despejo”, diz que “Uma palavra escrita não pode nunca ser apagada. Por mais que o desenho tenha sido feito a lápis e que, seja de boa qualidade a borracha, o papel vai sempre guardar o relevo das letras escritas. Não, senhor, ninguém pode apagar as palavras que escrevi.”

Concordo com ela e já que descobri que a palavra constitui o mundo, comecemos a dizer as palavras certas que mostram o mundo que queremos. Pelo que aprendi, as palavras que dizemos juntos mudam muita coisa e, por isso, acredito que podemos construir um novo mundo, bem mais parecido com a gente.

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