O individual e o coletivo: minha trajetória como empreendedora jurídica social

Ashoka Brasil
4 min readJul 13, 2021

Ana Paula Freitas
Jovem Transformadora pela Democracia

Ana Paula Freitas é uma mulher negra com cabelos crespos castanhos. Ela está vestindo uma camiseta preta com escritos em branco e um casaco vermelho
Foto: Arquivo Pessoal

Meu nome é Ana Paula Freitas — sou mulher, negra, mineira e advogada. Nasci na capital, Belo Horizonte, mas uma considerável parte da minha infância e juventude se deu na cidade de Ribeirão das Neves. Foi nesta cidade da região metropolitana de BH que efetivamente se deram as minhas interações sociais, as trocas de afetos, a construção do meu ser e a percepção das possibilidades e barreiras que iria enfrentar — que, já adianto, quase intransponíveis.

Logo pude perceber, em dolorosos aprendizados, como os marcadores de gênero, raça, heteronormatividade e classes sociais iriam incidir sobre o meu corpo. Práticas discursivas e ações concretas que me fizeram, à medida em que ia crescendo, perceber os impactos profundos, doídos e constantes, que insistiram e ainda insistem marcar e permanecer o meu corpo, minha psique e, por que não dizer, minha alma.

Me apresentar neste momento faz parte de um cuidado para comigo, mas também um cuidado com outras mulheres e homens com trajetórias semelhantes às minhas. Menos para afirmar que sou alguém que superou os obstáculos, as barreiras e os desafios impostos — a tal meritocracia –, mas, sim, como uma postura ética, política. Um fincar de uma bandeira, a partir, sim da minha trajetória em dizer na primeira pessoa, mas para nos ajudar a percebermos juntos que esses elementos perversos que constituem o meu ser estão longe de ter sido um problema pessoal e particular. São uma questão social, coletiva. Ou seja, questões estruturais e estruturantes de uma sociedade brasileira e mundial marcada pelas opressões: racismo, machismo e patriarcado, LGBTQPIA+fobia e classismo.

Inquietei, desafiei, subverti, ergui a voz e lutei desde o início. E sigo lutando.

Formei-me no curso de Direito no Centro Universitário Una em 2016. A partir daí, consolidei minha breve e intensa trajetória como empreendedora jurídica social, combinando o levantamento de recursos financeiros, com iniciativas que visam causar impacto na sociedade, no âmbito jurídico e judicial. Atuo no fomento do acesso à justiça, com mecanismos de litigância estratégica e com grupos de pessoas e organizações com incidência no âmbito jurídico, criando interrelações entre todos os atores da relação jurídica, bem como a análise dos casos sob a perspectiva interseccional — de gênero, raça e classe, dentre outros marcadores sociais — buscando criar um impacto sistêmico no Judiciário, o ecossistema jurídico.

Um dos momentos mais marcantes do meu trabalho foi o projeto “Solta Minha Mãe”, em 2017, do qual sou co-idealizadora. Iniciativa de um coletivo de advogadas e advogados populares, o projeto surgiu para questionar e enfrentar a política de encarceramento em massa feminino, proporcionando acesso à Justiça para mulheres e mães. O Brasil ocupa o quarto lugar no ranking mundial de aprisionamento feminino: são 40,6 mulheres em situação de cárcere para cada grupo de 10 mil mulheres.

Em dois anos de trabalho como coordenadora, fizemos pedidos jurídicos de perdão de pena para mulheres encarceradas em três presídios da região metropolitana de Belo Horizonte. Mapeamos a realidade daquelas mulheres. Promovemos debates sobre a realidade que elas enfrentam e sobre o descaso do sistema jurídico e prisional para a necessidades específicas enquanto mulheres e mães.

Ser reconhecida pela Ashoka no programa de Jovens Transformadores pela Democracia no Brasil por conta do trabalho relevante de impacto social e catalizador da população no acesso substancial à defesa jurídica tornou-se um impulso para que eu planejasse e executasse um plano de carreira para me tornar, de maneira autônoma, uma empreendedora jurídica social.

Foram imensos os aprendizados. No ano de 2019, tornei-me coordenadora de programas da Rede Liberdade, criada para atuar em casos concretos e emblemáticos de violações de direitos. Para isso, o Liberdade atua de maneira gratuita articulando ações jurídicas e judiciais com uma rede de advogados/as, promotores/as, defensores/as públicos e organizações e entidades de terceiro setor.

Entre os casos recentes com nossa atuação, temos a defesa de Preta Ferreira — Janice Ferreira da Silva, líder do movimento de moradia Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) de São Paulo, mantida presa de maneira arbitrária. Também atuamos no caso do “Massacre de Paraisópolis”, em que nove jovens foram mortos no baile da D17, em uma operação da Polícia Militar de São Paulo; nas violações de direitos que aconteceram nos protestos contra o aumento da tarifa, como foi o caso da ativista Andreza Delgado, agredida e detida pela polícia, juntamente com outros jovens; e no caso dos quatro brigadistas voluntários de Alter do Chão, vítimas de uma ação desmedida e injustificada do Estado.

Já em 2020, durante o contexto da pandemia de covid-19, renovo com mais um passo importante na minha carreira em prol da equidade racial nas carreiras jurídicas e defesa de direitos, com o lançamento do Instituto de Defesa da População Negra — IDPN, do qual sou co-fundadora e conselheira. A organização articula-se em duas frentes: defesa e assessoria jurídica para população negra e periférica sem acesso a representação legal individual qualificada; organização e fortalecimento de uma rede de advocacia negra, mediante capacitação, mentoria e distribuição de renda e inserção no mercado de trabalho. Atuamos, a princípio, no Rio de Janeiro — grande laboratório da política de segurança pública baseada no confronto, na execução e no encarceramento, que atinge sobremaneira a população negra e favelada.

Passos importantes e significativos foram dados por mulheres negras antes de mim, que proporcionaram que eu chegasse a este momento da minha trajetória. E ainda há muito a caminhar. A viver, mais que sobreviver. E continuar a colocar o corpo a disposição da luta.

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